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Experiência

Confusão no streetcar

No verão que passou, Eliana Rigol presenciou discussão entre passageiro e motorista de streetcar que acabou em agressão, bonde parado e polícia no local.

Era sexta-feira de verão, tínhamos acabado uma longa sessão de fotos no Harbourfront, mais exatamente no Music Garden. Tomadas ainda de um sentimento de afeto que só bebês provocam, eu e minha sócia terminamos o trabalho e fomos pegar um suco no local em frente. Dali, nosso plano era encontrar o pessoal para jantar no Kensington Market, num boteco qualquer.

Em Toronto, às 7pm, entramos no streetcar da Spadina, quase na beira do lago. Ao entrar, vi uma discussão do motorista com um passageiro. O rapaz, um moço com cara de nerd, bermuda xadrez, camisa e óculos, não parecia muito afeito a brigas e ainda assim eu achei que ele não estava com a razão. Confesso que a primeira coisa que pensei ao entrar no bonde foi: ih, esse cara tá arrumando confusão. Quantos são os julgamentos que fizemos todo dia sem o menor lastro de realidade. Mas, voltando à cena do crime, o rapaz insistia para o motorista que lhe desse o transfer, já que ele tinha direito de pegar outro transporte sem pagar a tarifa na sequência.

A discussão se acalorou e eu me sentei junto com minha amiga. Só que o negócio ficou violento e quando menos esperava eu já estava ao lado do motorista tentando impedi-lo de agredir o rapaz. Fato foi que na insistência de pegar o transfer o rapaz pôs a mão no papel de um jeito insolente e o motorista descontrolado saltou no pescoço dele e o forçou contra a porta do streetcar. Aquilo não me sai da cabeça. Foi agressivo, desproporcional e humilhante até para mim que estava presenciando, imagina para o cara que estava sofrendo o peso do braço do motorista na sua garganta.

Ninguém dentro do bonde se manifestou contra o que estava acontecendo. O rapaz perguntou se ninguém ia fazer nada. Tinham muitos homens ali dentro e nenhum se mexeu. Eu e uma senhora portuguesa ficamos em cima do motorista para que ele soltasse o rapaz. Naquela hora, o motorista já vermelho falou furioso para que o rapaz fosse embora, pois estava atrasando a todos. Só que ele estava muito nervoso, ofegante, assustado e humilhado para sair e deixar assim. Ficou parado na porta e ligou no ato para a polícia. Avisou a todos que ficaria porque coisas como aquela não poderiam mais se repetir. O motorista saiu furioso dizendo para os passageiros que deixassem o bonde que outro viria logo a seguir. Daí eu pensei: mas agora quero ver quem me tira daqui.

Fiquei a par da história toda naqueles minutos tensos que se passaram. O guri tinha pego o bonde errado, pagou e sentou. Quando se tocou que precisava pegar outro bonde, pediu informação, o motorista não deu e ainda mandou ele ir embora sem o transfer. Não é de hoje que os usuários dos streetcars reclamam do mau comportamento dos motoristas. Não é de hoje que a obediência e temperamento ameno fazem com que todos aguentem calados.

A história não termina aqui, só começa. Todos dentro do bonde saíram, alguns muito irritados com o rapaz por ter feito o chamado para a polícia. Todos, exceto minha amiga, eu e uma senhora portuguesa que presenciou tudo desde o começo. Vimos que ele estava sozinho. Vimos que o motorista do streetcar tinha chamado o pessoal da sua equipe que já estava lá ao seu lado, defendendo sua versão da história. Nessa hora, sem saber como aquilo terminaria, dei para o rapaz meu cartão, caso ele precisasse de testemunha. Ele nos agradeceu com olhar solitário e pediu desculpas por estarmos passando por aquilo.

O supervisor da TTC entrou no bonde nervoso e nos mandou descer. Falamos que dali só sairíamos quando a polícia chegasse. O rapaz nos agradeceu a companhia e apoio. Só que os policiais demoravam e o tempo passava e a noite começou a cair. O supervisor da TTC estava determinado a intimidar todos, a fazer com que desistíssemos. Tentou separar a senhorinha portuguesa para impedi-la de dar seu telefone para o rapaz. Nós não fomos embora como ele gostaria, permanecemos. E a polícia chegou e acompanhou todo o desenrolar.

Ficamos olhando o modos operandi da polícia de Toronto, afinal como habitantes da cidade, importa saber como isso funciona aqui. Os policias conversaram com as duas partes e depois reuniram todos para falar. O motorista será investigado, ganhou uma advertência escrita e terá sua linha trocada. O rapaz, que foi acuado pela TCC, se sentiu mais tranquilo quando os policiais chegaram. E nós, que já estávamos exaustas daquela brincadeira, seguimos nosso rumo faceiras de saber que tudo terminou bem e o rapaz estava seguro.

Dois dias depois, quando já havia esquecido o ocorrido, recebi um email do rapaz agradecendo nossa atitude e contando todo o resto. Ele disse que ficou muito feliz em saber que existem pessoas solidárias numa cidade grande que se determinam a perder a noite de sexta-feira para ajudar um desconhecido.

O que ele falou me fez pensar. A vida na cidade grande pode ser menos civilizada do que entre animais. Um pouco selvagem para mim. Assim, passar aquele tempo ali, entre aquelas pessoas, foi mais uma lição do quanto podemos nos colocar no lugar do outro. Ele poderia ser eu e eu não gostaria de me ver sozinha depois de ter passado por uma violação presenciada por tantos.

Agimos instintivamente. Agimos com o coração e não foi coincidência só terem ficado mulheres dentro daquele bonde. Fazer o bem pode ser simples e rápido e outras vezes exige tempo e paciência, mas sempre vale a pena quando acreditamos que atitudes limpas não são as mais convenientes e sim aquelas que não deixam margem para dúvida. E ajudar nunca deveria nos fazer titubear.

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Eliana Rigol é uma inquieta faceira nascida no sul do mundo. É autora do livro "Moscas no Labirinto" e cotidianamente deixa as ideias fluírem num blog que mantém há muitos anos. Advogada por formação, adotou a fotografia e a escrita como formas de tornar a vida mais leve. Migrou para Toronto em 2010, se tornou mãe da Luna, já rodou o mundo e voltou. Acredita no vento, no coração e no movimento.

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