Cultura
As figuras urbanas de Toronto
Todas as cidades têm personagens que eu costumo chamar de “figuras urbanas”. Toronto não é exceção. A maior metrópole canadense está cheia daquelas pessoas que deixam de ser apenas indivíduos e acabam por se tornar marcos da cidade.
Arruda, o mendigo-filósofo da avenida Pedroso de Morais, era praticamente uma celebridade na zona Oeste de São Paulo na época em que eu morava naquelas bandas. O engraxate Augusto, que reside há cinco anos em uma árvore em plena Radial Leste (uma das avenidas mais movimentadas da cidade), também ficou famoso recentemente pelo seu estilo de vida não muito convencional.
Em Toronto, a figura mais notável, que provoca espantos e gargalhadas, se encontra normalmente no cruzamento da Dundas com a Yonge, a esquina mais popular da região central.
Certo dia estava caminhando no local quando, de repente, um senhor ao meu lado berra “BELIEVE IN THE LORD!”. Estava com o meu pai e, após o susto inicial, olhamos um para o outro e não conseguimos parar de rir.
Esse homem cabisbaixo, de idade já um pouco avançada e uma aparência taciturna enganadora, fica sempre ali quietinho olhando para o chão e segurando um folheto em uma das mãos. Em intervalos regulares, ele olha para cima e proclama a sua fé de forma espontânea e com abundância de energia.
Depois do ocorrido, meu pai e eu passamos a observar a reação das outras pessoas que passavam por perto da figura. Nos divertimos muito vendo os sobressaltos dos transeuntes (que depois também passavam a rir, inevitavelmente). Quando meus tios vieram me visitar, levei-os para conhecer o “believe in the Lord”. Eles adoraram, virou uma atração turística.
Outra figura urbana de destaque é o mendigo gordinho do Queen’s Park, que fica sempre sentado no mesmo banco do parque olhando para o além. No fim de semana passado, o vi pela primeira vez fora de seus domínios quando havia um evento de sikhs (devotos do Sikhismo) – no local.
Ele estava em frente à uma biblioteca que fica ao lado do parque, creio que indignado com a invasão de seu território. Enquanto o líder sikh declamava um discurso fervoroso que ao ouvido ocidental parecia uma interminável sequência de onomatopeias, o mendigo debochava da situação, gritando sons aleatórios em uma tentativa de imitar o religioso, para a o divertimento geral da galera.
Por fim, existe também a figura do Tim Hortons perto do cruzamento da Bay com a Bloor. Esse cidadão está sempre lá com a sua jaqueta marrom e seu cabelo penteado para trás no estilo “a vaca lambeu”, ora murmurando e gesticulando coisas para si mesmo, ora lendo a Bíblia. Tenho um pouco de pena dele, pois quase sempre está sozinho e parece ter alguma doença mental. Mas outro dia esse senhor protagonizou uma cena interessante, para dizer o mínimo.
Entrou outro “louco” no local e os dois se sentaram juntos. De onde eu estava conseguia ouvir um pouco a conversa dos dois, que não fazia sentido nenhum. Mas curiosamente a comunicação entre eles parecia ser um sucesso, eles estavam se entendendo. Fiquei intrigado e pensei: afinal será que nós é que somos os loucos?
A vida dessas figuras urbanas pode parecer triste para muitas pessoas. Porém, esses indivíduos conseguiram uma coisa que muitos desejam e poucos têm: fama e simpatia dos outros. Além do mais, não parecem ser infelizes, na maior parte das vezes. Ao invés de olhar para as figuras urbanas e nutrir sentimentos negativos, vejo nelas expressões de adaptação e criatividade. Agradeço às figuras urbanas por tornarem as cidades mais diversificadas e interessantes.