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O jeitinho brasileiro no Canadá

Como você explicaria a um canadense o significado de “jeitinho brasileiro”? Por mais difícil que seja articular uma definição, este tipo de comportamento faz parte do nosso dia-a-dia e nós o conhecemos bem. Para o brasileiro adepto do jeitinho, não há problema que não tenha solução: o estacionamento é só para mensalistas? Dê um trocado para o frentista. Levou multa de velocidade? Pague um “café” para o policial. É demorada a renovação de um documento? Invoque o nome de uma autoridade para o atendente do Detran. Funciona como passe de mágica.

Há algum tempo que venho pensando sobre o fenômeno antropológico que é o jeitinho brasileiro, e ao observar o comportamento de alguns conterrâneos que passaram o verão aqui em Toronto, pude chegar às conclusões que divido com vocês agora. Mas antes de mais nada, quero deixar claro que o famoso jeitinho, na verdade, não tem nacionalidade específica e existe em qualquer sociedade cujo quadro sócio-político coage pelo menos parte da população. Ainda assim, tomarei a liberdade de discutir o que aprendi sobre o jeitinho brasileiro aqui no Canadá. E não se preocupe, a conclusão desse post não será que não existe jeitinho no Canadá, tampouco que a versão canadense do jeitinho é zelar pela honestidade ou algo assim, como diria o estrangeiro que sustenta um olhar romântico.

Não é difícil imaginar as condições que deram origem ao jeitinho. Quando parte da população se sente incapacitada pelo status quo, ela procura maneiras alternativas de conseguir aquilo de que necessita, ou seja, ela dá um jeitinho. Não é à toa então que isso seja comum num país com tamanha desigualdade social como o Brasil. No entanto, hoje em dia o jeitinho não é mais um modo de agir exclusivo dos oprimidos, e se tornou parte do cotidiano de qualquer brasileiro que procura levar vantagem em alguma situação. De acordo com o jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto, “jeitinho brasileiro” é uma “vertente simpática da corrupção e do apadrinhamento”. Ainda assim, muitos consideram o jeitinho uma verdadeira virtude do brasileiro, que demonstra criatividade e improvisação ao driblar normas e convenções sociais para encontrar alguma solução. Ao resolver um problema, no entanto, o jeitinho sempre cria outro, e muitas vezes, o problema a ser resolvido é, ironicamente, fruto da generalização do próprio jeitinho.

O seguinte exemplo nos diz um pouco mais sobre a natureza do “jeitinho”. Trata-se de um casal de amigos que, durante sua viagem por Toronto, decidiu conhecer o Canada’s Wonderland, o maior parque de diversões do Canadá. Há três tipos de ingresso para o parque: regular single day pass – que custa em torno de C$30 e é válido por um só dia; pay one, visit twice pass – que custa em torno de C$40 e é válido por duas visitas; e season pass – que custa em torno de C$80 e é válido por um número indeterminado de visitas durante toda uma temporada. Claro, ambos os pay one, visit twice pass e season pass são válidos apenas para uma pessoa e, portanto, seus portadores não podem emprestar os ingressos para que terceiros possam ir ao parque. Ou pelo menos é isso que eles pensam!

Embora o season pass seja um cartão que inclui nome e foto do portador além de outras informações, o pay one, visit twice pass nada mais é do que um papel que sequer contém o nome da pessoa. Isso permite que este ingresso seja facilmente usado de forma irregular, assim como foi pelos meus amigos que, afim de economizar um trocado, planejaram dividir um pay one, visit twice pass com um outro casal de brasileiros. A ideia, segundo eles, era genial. Um casal compraria dois ingressos de C$40 cada que seriam válidos por duas visitas. Depois de ir ao parque, os dois venderiam os ingressos para o outro casal pela metade do preço. No fim das contas, cada casal economizaria um total de C$20. Mas às custas de quem? O problema é que onde há vantagem, há sempre desvantagem. Neste caso, a maioria diria que foi o parque de diversões que foi desavantajado porque foi ele que arcou com o prejuízo. Mas será mesmo?

O parque, como toda instituição capitalista, visa sempre a repassar o prejuízo àquele que causa o prejuízo. Se os usuários estão fraudando o pay one, visit twice pass, o parque eventualmente aumentará o preço do ingresso ou, pior, o eliminará de vez. O prejuízo assumido pela sociedade – que terá de pagar toda vez que visitar o parque – é, portanto, incomparavelmente maior do que o “lucro” individual de C$10 da pessoa que deu um jeitinho. Coloco “lucro” entre aspas pois, por fazer parte da sociedade, essa pessoa também perde mais do que ganha. Quando esse indivíduo quiser ir ao parque duas vezes ao invés de uma, ele não poderá contar com o pay one, visit twice pass de C$40, já que ele fraudou este serviço e causou prejuízo ao parque. Ele terá de comprar dois regular single day passes por C$30 cada, terá de enfrentar por duas vezes as filas, e assim por diante. Desta forma, podemos observar que com o jeitinho brasileiro, ninguém ganha e todos perdem.

Ao retornar do parque, o casal não poupou elogios, dizendo que era imenso, divertido, e acima de tudo organizado. Elogiaram também o fato de que com o pay one, visit twice pass, uma segunda visita ao parque se torna viável, algo que eles definitivamente fariam se morassem por aqui. Explicaram que no Brasil, eles não costumam ir muito a parques de diversões, já que o preço do ingresso é relativamente caro. “Até nisso o Brasil é atrasado”, disseram. “Por que não temos ingressos promocionais como se tem por aqui?” Ironicamente, a resposta para essa pergunta está na conduta do próprio casal, que com um jeitinho, tirou proveito do sistema que aqui existe. Eles mesmos são os culpados pelo fato de que não há tais ingressos promocionais nos parques brasileiros.

Uma segunda observação, desta vez sobre o Go Transit, sistema de transporte público inter-regional de Ontário, resume bem toda essa história. Um outro casal de brasileiros que também passava o verão em Toronto, não poupou elogios aos trens da empresa, que eram espaçosos, confortáveis, pontuais e práticos. Elogiaram especialmente a ausência de catracas nas estações e sua praticidade. Naturalmente, os dois passaram então a criticar duramente o transporte público no Brasil. Riram ao imaginar como seria a ausência de catracas nas estações. Dos ônibus, trens e metrôs as críticas foram rapidamente direcionadas aos pobres sem instrução e aos governantes do país, afinal, eles certamente são os culpados pela decadente infraestrutura nacional. Mas será mesmo?

O casal então me perguntou como funcionava a compra de passagens para o Go Transit, já que não havia catracas. Fiquei surpreso – pois eles pareciam usar o sistema com certa frequência – e o que o casal revelou em seguida, nos leva às mesmas conclusões do exemplo anterior. Explicaram que, na verdade, eles só usavam o Go Train uma ou duas vezes por semana, e que portanto, não sentiam necessidade de pagar passagem, já que o sistema era obviamente rico e suas passagens não fariam falta. Ao ver meu espanto, tentaram defender sua atitude, dizendo que diferente de mim eles eram meros turistas, e que portanto não deveriam ter que sustentar o sistema público daqui. Esse último argumento eu também não entendi.

Ironicamente, a situação precária do transporte público no Brasil que o casal tanto difamou pode ser atribuído, pelo menos parcialmente, ao comportamento do próprio casal. Isso porque eles mostraram que na ausência de catracas, eles não pagariam a condução, provavelmente tendo como justificativa o aperto, o desconforto e o atraso dos trens. Argumentariam também que pagam impostos e que todo mundo faz. Mas o prejuízo causado pela generalização deste comportamento privaria a sociedade de verba que, presumidamente, seria usada para a melhoria do próprio transporte. Mais uma vez, podemos ver que com o jeitinho brasileiro, até quem ganha perde. Portanto, ao rir de como seria a ausência de catracas nas estações do Brasil, o casal não ria dos mais pobres nem dos governantes como imaginavam. Eles riam deles mesmos.

O maior problema deste comportamento é que ele parece ser inerente à nossa sociedade. De ferramenta usada por uma minoria para obter o necessário para sobreviver, o jeitinho se tornou norma de convivência na sociedade. As premissas que garantem a popularidade do jeitinho é que todos procuram levar vantagem em tudo que fazem no seu dia-a-dia, e que portanto, para não ser trapaciado, deve-se fazer o mesmo. Em uma espécie de círculo vicioso, o indivíduo procura sempre fazer algo da maneira que seja mais vantajosa a ele sem consideração à sua própria sociedade. O ator age sem compreender as reais consequências de suas ações e não percebe que faz parte daquilo que considera ser problema. Esta é, inclusive, a melhor forma de descrever o jeitinho brasileiro. É um modo de agir irônico, contraditório e confuso, mas que pode ser eliminado com um pouco de reflexão.

Apesar de ser predominante em sociedades onde triunfam as nulidades, a desonra e a injustiça – como dizia Ruy Barbosa – países desenvolvidos como o Canadá não estão imunes à proliferação do jeitinho. Basta que parte da população destes países se sinta coagida e injustiçada pelo restante para que eles também escolham agir desta forma. No caso do Canadá, o governo precisa garantir que imigrantes tenham o mesmo tratamento e as mesmas possibilidades que os demais, se não, eles encontrarão alternativas para alcançar suas metas, dando início ao círculo vicioso. Com o tempo, as diversas características que fazem do Canadá um país atraente para se viver seriam tiradas da sociedade não por governantes corruptos, capitalistas ou criminosos, mas pela própria sociedade.

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Bruno é natural de Santo André (SP) e mora no Canadá desde 2007, onde estudou Filosofia e Criminologia na Universidade de Toronto até 2014. Mantém os blogs Enganos Mundanos e Conditioned Things.

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