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O outro lado do jeitinho brasileiro

Como é possível tê-lo como virtude se o jeitinho é essa vertente da corrupção e do apadrinhamento prejudicial à sociedade e ao indivíduo? É difícil imaginar que exista uma resposta para essa pergunta, mas ela existe. Na verdade, quando dizem que o jeitinho é uma qualidade do brasileiro, pessoas se referem não às consequências da generalização deste comportamento mas sim às habilidades adquiridas pelos brasileiros que são obrigados a conviver com o jeitinho. É justamente disso que falo neste post.

Minha intenção ao escrever sobre o jeitinho brasileiro no exterior era instigar o leitor a pensar sobre as causas e as consequências da proliferação deste tipo de comportamento. Nós vimos que o “jeitinho” é um modo de agir irônico e contraditório que prevalece em sociedades cuja população se sente coagida pelos mecanismos sociopolítico-econômicos de seu país, assim como a brasileira, mas que pode surgir também nos países considerados desenvolvidos, assim como o Canadá. A generalização do jeitinho é resultado de um modo de pensar redundante – um cidadão procura levar vantagem sobre os demais justamente para que ele não seja desavantajado – que ao invés de solucionar, aceita os problemas como eles são. Concluímos, então, que o jeitinho usado pelo brasileiro acaba por fortalecer o mesmo sistema que coage a população.

Felizmente, o artigo gerou repercussão e diversas foram as reações demonstradas pelos leitores através de e-mails e comentários. Uma bastante comum e que vale consideração foi que a análise proposta sobre o jeitinho brasileiro serviu para mostrar que a nossa sociedade está “contaminada” e “não tem mais cura”. Isso, porém, não é verdade. Apesar de ser, a priori, um fenômeno antropológico, o jeitinho brasileiro é, em sua capacidade social, um fenômeno cultural. Isso significa que ele não é inerente à nossa sociedade e pode sim ser eliminado. O brasileiro que notar que está tirando vantagem não só da sociedade – como se ele não fizesse parte dela – mas também de si mesmo, certamente procurará agir de uma outra maneira. É só humano. Por isso disse acreditar que essa “contaminação” pode ser “curada” com um pouco de reflexão. Mas confesso que, como sugeriu um leitor, talvez seja preciso muita reflexão. Um pouco pode não ser o bastante.

Vale notar também que o brasileiro adepto do jeitinho – desde o que compra produtos piratas ao que conta com serviços irregulares –, por ser confuso, não é mau caráter. Por ter se tornado norma de convivência na sociedade, às vezes acabamos nos rendendo às facilidades que um jeitinho nos propõe, e sua praticidade. Mas ainda mais importante que agir corretamente é agir conscientemente, já que assim, mesmo quando damos um jeitinho, sabemos como podemos e porque devemos melhorar. Assim podemos também conscientizar quem desconhece as raízes e as consequências de suas ações.

Outra reação comum entre os leitores foi dizer que, apesar dos pesares, o jeitinho é de fato uma virtude do brasileiro. Mas como é possível tê-lo como virtude se o jeitinho é essa vertente da corrupção e do apadrinhamento prejudicial à sociedade e ao indivíduo? É difícil imaginar que exista uma resposta para essa pergunta, mas ela existe. Na verdade, quando dizem que o jeitinho é uma qualidade do brasileiro, pessoas se referem não às consequências da generalização deste comportamento para a sociedade como as que foram discutidas no último post, mas sim às habilidades adquiridas pelos brasileiros que são obrigados a conviver com o jeitinho. É justamente disso que falo agora.

No exterior, o profissional brasileiro tem fama de ser, entre outras coisas, ágil e carismático, e tendo trabalhado dentro e fora do Brasil, eu posso atestar esse fato. Claro, são muitos os “brazucas” desprovidos dessas qualidades e muitos os “gringos” providos delas, mas não é à toa que brasileiro tem essa fama. Diferente da população de países desenvolvidos, como já discutimos, o brasileiro muitas vezes tem de driblar normas e convenções sociais (tem de dar um jeitinho) para resolver problemas que parecem não ter solução. E isso simplesmente para funcionar normalmente na sociedade. Vamos a um exemplo.

Até uns anos atrás, tirar a carteira de motorista na região metropolitana de São Paulo através dos trâmites convencionais era praticamente impossível. Qualquer pessoa que não se sujeitasse a pagar uma quantia pré-determinada pela auto-escola para obter a carta, teria que realizar o teste prático perfeitamente. Perfeitamente. Olhar para o retrovisor sem precisar por um segundo sequer resultaria em reprovação. Agora, quem não resistia às pressões sociais ou até mesmo à praticidade do jeitinho – o que, neste caso, é de se entender – pagava pela carta e era garantido a aprovação no teste prático. Só não podia bater o carro (aliás, minto, uma amiga bateu o carro sutilmente em uma árvore e ainda assim recebeu a carta). Só não podia dar “PT”. Mas o que fazia o candidato que precisava da carta mas não tinha dinheiro para o suborno? Ele conversava com “Fulano”, pedia um favor para “Ciclano”, e assim por diante, até dar seu próprio jeitinho. Assim como fazem milhões de brasileiros – às vezes para tirar vantagem, às vezes para receber algo que é de direito seu – o candidato tinha que se virar.

Ao conviver em uma sociedade que funciona desta forma, o brasileiro acaba desenvolvendo o famoso “jogo de cintura”, e é justamente a isso que as pessoas se referem quando dizem que o jeitinho brasileiro é uma virtude. Vale esclarecer, então, que o jogo de cintura não é o jeitinho brasileiro propriamente dito, mas sim uma característica adquirida por aqueles que convivem com o jeitinho. Creio que, assim, todos podemos concordar que o jogo de cintura é sim uma qualidade, mas que o jeitinho em si não é.

Além de carisma e agilidade, que já foram mencionados, ter jogo de cintura significa ter criatividade e predisposição à improvisação, características necessárias para que o brasileiro possa sobreviver em uma sociedade cujo sistema existe pra resolver os problemas do sistema. “Thinking outside the box” é uma expressão da língua inglesa que se refere a um modo inovador de se pensar que resume bem as qualidades do jogo de cintura. Pensar outside the box é pensar a partir de uma nova perspectiva a fim de identificar suposições para poder romper paradígmas. Há definição melhor que essa para “jogo de cintura”? Acho que não.

Horácio já dizia que “a adversidade desperta em nós capacidades que, em circunstâncias favoráveis, teriam ficado adormecidas.” Só é natural, então, que o brasileiro desenvolva jogo de cintura – a habilidade de pensar outside the box – mais que o suiço, o norueguês e o canadense. Infelizmente, isso é resultado da corrupção que permeia nossa sociedade e o jeitinho do qual nos apropriamos para lidar – ou melhor, para conviver – com ela. De qualquer forma, este lado positivo do jeitinho brasileiro, digamos assim, torna o futuro um pouco mais esperançoso. Com jogo de cintura e um pouco de reflexão (está bem, muita reflexão), podemos dar um jeito no jeitinho e consequentemente nos diversos problemas sociais de nosso país.

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Bruno é natural de Santo André (SP) e mora no Canadá desde 2007, onde estudou Filosofia e Criminologia na Universidade de Toronto até 2014. Mantém os blogs Enganos Mundanos e Conditioned Things.

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